Os Invisíveis
“É assustador pensar como as crianças estão constantemente em perigo”, diz a professora em A Idade da Inocência, de François Truffaut. E na cena final, durante uma memorável conversa com seus alunos, ela diz que um adulto que não está feliz pode recomeçar, mas uma criança infeliz está indefesa. Mais tarde acrescenta: “De todas as injustiças da humanidade, a injustiça contra as crianças é a mais desprezível”.
Os Invisíveis aborda esse problema a partir da perspectiva de dois adolescentes e um menino de seis anos que, vivendo nas ruas de Buenos Aires, são recrutados por indicação de um ex-policial que virou segurança, para realizar uma série de trabalhos muito parecidos com aqueles que deram ao ex-policial certo prestígio no submundo.
“Muitos seguranças privados da Zona Norte também se metiam com isso: chamavam os garotos toda vez que os donos das casas que eles cuidavam iam viajar ou passar o fim de semana fora da cidade. Os moleques que eram de confiança valiam ouro, sabiam entrar nas casas sem deixar rastros e não saiam falando por aí o que faziam. Guida já tinha testado vários meninos, mas ninguém chegava aos pés do trio formado pela Baixinha, por Ismael e pelo Alho. Não havia casa em que os três não conseguissem entrar por alguma janela mal fechada.”
São meninos indefesos, sofredores e inteligentes que conseguiram sobreviver às constantes ameaças e às histórias que circulam nas ruas, onde se fala de um médico que anda pelo Onze, bairro pobre de Buenos Aires, cuidando das crianças, oferecendo casa e comida em troca de passar uma noite com elas; onde as meninas são levadas para o Norte e nunca mais voltam; onde policiais usam as crianças como bucha de canhão. Mas não deixam de ser meninos e a infância adiada se manifesta, de uma forma ou de outra. E é precisamente nessa área que Lucía Puenzo mostra todo o seu talento narrativo.
“Ismael se afundou na poltrona, mas não fechou mais os olhos, nem essa noite, nem nenhuma outra. Observou o jeito que o bicho cuspia os ossos da sua presa. Aplaudiu ao ver o crânio ser cuspido. Ouviu um chiu! da parte da frente. O lanterninha tirou o garoto da sala e o enfiou no banheiro masculino. – Você quer me meter em problema? Ismael respondeu que não, ainda excitado pelas imagens. – Esse bicho – balbuciou – ele existe? O lanterninha olhou para ele primeiro desconcertado, depois com uma ternura que havia décadas não sentia. Encontrou no garoto o depositário silencioso de uma cultura cinematográfica transbordante.”
A inocência impõe-se para dar o tom deste romance fascinante, perfeitamente estruturado em dois planos da realidade; por um lado estão os adultos absolutamente corruptos e por outro as crianças, controladas pelo medo que supera a desconfiança, empurradas pela sensação de oportunidade que não lhes permite vislumbrar plenamente os verdadeiros perigos. Talvez se trate de algo muito mais profundo e complexo, algo a meio caminho entre o desamparo que as obriga a correr sempre para nenhum lugar e a descrença de quem se apega à necessidade de ser feliz apesar de tudo. Como acontece no momento em que as crianças veem o mar pela primeira vez e mergulham para abraçar uma alegria intensa mas ao mesmo tempo efêmera. Mas primeiro é preciso convencê-los a ir ao Uruguai pelo Delta do Rio da Prata, com a promessa de ganhar muito bem em seis dias de trabalho de arrombamento de casas diferentes, dentro de um mesmo condomínio onde estão proprietários, cães treinados e câmeras de segurança. Vigiados por um homem que lhes dá instruções através do celular, os três meninos são jogados no meio do condomínio e roubar conforme combinado parece fácil. Alho é capaz de entrar nas casas pelos lugares mais inesperados. Só que nem sempre as casas estão desocupadas, em alguns casos há famílias inteiras com crianças que tiveram a sorte de nascer com todas as regalias possíveis.
“Abriu uma das mochilas e tirou um tênis novo que ele mesmo tinha roubado da casa. Era metalizado e aerodinâmico, as solas brilhando com luzes que pareciam minúsculas cápsulas espaciais. Descalçou as galochas. Quando pôs o tênis, ficou paralisado ao ver que o cadarçoamarrava sozinho, enquanto a palmilha se ajustava ao formato dos seus pés. Já tinha assistido toda a franquia de De volta para o futuro na mostra retrô de um cinema no Once, mas jamais imaginou que os tênis inteligentes realmente existissem.”
E é a partir daí que ocorre uma reviravolta no romance, uma virada que Lucía Puenzo propõe de forma muito original na trama. Tão literário quanto cinematográfico Os Invisíveis é um livro comovente e trágico. O seu final obriga-nos a meditar sobre a palavra infância e às responsabilidades que cabem aos adultos.
Os Invisíveis aborda esse problema a partir da perspectiva de dois adolescentes e um menino de seis anos que, vivendo nas ruas de Buenos Aires, são recrutados por indicação de um ex-policial que virou segurança, para realizar uma série de trabalhos muito parecidos com aqueles que deram ao ex-policial certo prestígio no submundo.
“Muitos seguranças privados da Zona Norte também se metiam com isso: chamavam os garotos toda vez que os donos das casas que eles cuidavam iam viajar ou passar o fim de semana fora da cidade. Os moleques que eram de confiança valiam ouro, sabiam entrar nas casas sem deixar rastros e não saiam falando por aí o que faziam. Guida já tinha testado vários meninos, mas ninguém chegava aos pés do trio formado pela Baixinha, por Ismael e pelo Alho. Não havia casa em que os três não conseguissem entrar por alguma janela mal fechada.”
São meninos indefesos, sofredores e inteligentes que conseguiram sobreviver às constantes ameaças e às histórias que circulam nas ruas, onde se fala de um médico que anda pelo Onze, bairro pobre de Buenos Aires, cuidando das crianças, oferecendo casa e comida em troca de passar uma noite com elas; onde as meninas são levadas para o Norte e nunca mais voltam; onde policiais usam as crianças como bucha de canhão. Mas não deixam de ser meninos e a infância adiada se manifesta, de uma forma ou de outra. E é precisamente nessa área que Lucía Puenzo mostra todo o seu talento narrativo.
“Ismael se afundou na poltrona, mas não fechou mais os olhos, nem essa noite, nem nenhuma outra. Observou o jeito que o bicho cuspia os ossos da sua presa. Aplaudiu ao ver o crânio ser cuspido. Ouviu um chiu! da parte da frente. O lanterninha tirou o garoto da sala e o enfiou no banheiro masculino. – Você quer me meter em problema? Ismael respondeu que não, ainda excitado pelas imagens. – Esse bicho – balbuciou – ele existe? O lanterninha olhou para ele primeiro desconcertado, depois com uma ternura que havia décadas não sentia. Encontrou no garoto o depositário silencioso de uma cultura cinematográfica transbordante.”
A inocência impõe-se para dar o tom deste romance fascinante, perfeitamente estruturado em dois planos da realidade; por um lado estão os adultos absolutamente corruptos e por outro as crianças, controladas pelo medo que supera a desconfiança, empurradas pela sensação de oportunidade que não lhes permite vislumbrar plenamente os verdadeiros perigos. Talvez se trate de algo muito mais profundo e complexo, algo a meio caminho entre o desamparo que as obriga a correr sempre para nenhum lugar e a descrença de quem se apega à necessidade de ser feliz apesar de tudo. Como acontece no momento em que as crianças veem o mar pela primeira vez e mergulham para abraçar uma alegria intensa mas ao mesmo tempo efêmera. Mas primeiro é preciso convencê-los a ir ao Uruguai pelo Delta do Rio da Prata, com a promessa de ganhar muito bem em seis dias de trabalho de arrombamento de casas diferentes, dentro de um mesmo condomínio onde estão proprietários, cães treinados e câmeras de segurança. Vigiados por um homem que lhes dá instruções através do celular, os três meninos são jogados no meio do condomínio e roubar conforme combinado parece fácil. Alho é capaz de entrar nas casas pelos lugares mais inesperados. Só que nem sempre as casas estão desocupadas, em alguns casos há famílias inteiras com crianças que tiveram a sorte de nascer com todas as regalias possíveis.
“Abriu uma das mochilas e tirou um tênis novo que ele mesmo tinha roubado da casa. Era metalizado e aerodinâmico, as solas brilhando com luzes que pareciam minúsculas cápsulas espaciais. Descalçou as galochas. Quando pôs o tênis, ficou paralisado ao ver que o cadarçoamarrava sozinho, enquanto a palmilha se ajustava ao formato dos seus pés. Já tinha assistido toda a franquia de De volta para o futuro na mostra retrô de um cinema no Once, mas jamais imaginou que os tênis inteligentes realmente existissem.”
E é a partir daí que ocorre uma reviravolta no romance, uma virada que Lucía Puenzo propõe de forma muito original na trama. Tão literário quanto cinematográfico Os Invisíveis é um livro comovente e trágico. O seu final obriga-nos a meditar sobre a palavra infância e às responsabilidades que cabem aos adultos.
Características | |
Autor | Lucía Puenzo |
Biografia | “É assustador pensar como as crianças estão constantemente em perigo”, diz a professora em A Idade da Inocência, de François Truffaut. E na cena final, durante uma memorável conversa com seus alunos, ela diz que um adulto que não está feliz pode recomeçar, mas uma criança infeliz está indefesa. Mais tarde acrescenta: “De todas as injustiças da humanidade, a injustiça contra as crianças é a mais desprezível”. Os Invisíveis aborda esse problema a partir da perspectiva de dois adolescentes e um menino de seis anos que, vivendo nas ruas de Buenos Aires, são recrutados por indicação de um ex-policial que virou segurança, para realizar uma série de trabalhos muito parecidos com aqueles que deram ao ex-policial certo prestígio no submundo. “Muitos seguranças privados da Zona Norte também se metiam com isso: chamavam os garotos toda vez que os donos das casas que eles cuidavam iam viajar ou passar o fim de semana fora da cidade. Os moleques que eram de confiança valiam ouro, sabiam entrar nas casas sem deixar rastros e não saiam falando por aí o que faziam. Guida já tinha testado vários meninos, mas ninguém chegava aos pés do trio formado pela Baixinha, por Ismael e pelo Alho. Não havia casa em que os três não conseguissem entrar por alguma janela mal fechada.” São meninos indefesos, sofredores e inteligentes que conseguiram sobreviver às constantes ameaças e às histórias que circulam nas ruas, onde se fala de um médico que anda pelo Onze, bairro pobre de Buenos Aires, cuidando das crianças, oferecendo casa e comida em troca de passar uma noite com elas; onde as meninas são levadas para o Norte e nunca mais voltam; onde policiais usam as crianças como bucha de canhão. Mas não deixam de ser meninos e a infância adiada se manifesta, de uma forma ou de outra. E é precisamente nessa área que Lucía Puenzo mostra todo o seu talento narrativo. “Ismael se afundou na poltrona, mas não fechou mais os olhos, nem essa noite, nem nenhuma outra. Observou o jeito que o bicho cuspia os ossos da sua presa. Aplaudiu ao ver o crânio ser cuspido. Ouviu um chiu! da parte da frente. O lanterninha tirou o garoto da sala e o enfiou no banheiro masculino. – Você quer me meter em problema? Ismael respondeu que não, ainda excitado pelas imagens. – Esse bicho – balbuciou – ele existe? O lanterninha olhou para ele primeiro desconcertado, depois com uma ternura que havia décadas não sentia. Encontrou no garoto o depositário silencioso de uma cultura cinematográfica transbordante.” A inocência impõe-se para dar o tom deste romance fascinante, perfeitamente estruturado em dois planos da realidade; por um lado estão os adultos absolutamente corruptos e por outro as crianças, controladas pelo medo que supera a desconfiança, empurradas pela sensação de oportunidade que não lhes permite vislumbrar plenamente os verdadeiros perigos. Talvez se trate de algo muito mais profundo e complexo, algo a meio caminho entre o desamparo que as obriga a correr sempre para nenhum lugar e a descrença de quem se apega à necessidade de ser feliz apesar de tudo. Como acontece no momento em que as crianças veem o mar pela primeira vez e mergulham para abraçar uma alegria intensa mas ao mesmo tempo efêmera. Mas primeiro é preciso convencê-los a ir ao Uruguai pelo Delta do Rio da Prata, com a promessa de ganhar muito bem em seis dias de trabalho de arrombamento de casas diferentes, dentro de um mesmo condomínio onde estão proprietários, cães treinados e câmeras de segurança. Vigiados por um homem que lhes dá instruções através do celular, os três meninos são jogados no meio do condomínio e roubar conforme combinado parece fácil. Alho é capaz de entrar nas casas pelos lugares mais inesperados. Só que nem sempre as casas estão desocupadas, em alguns casos há famílias inteiras com crianças que tiveram a sorte de nascer com todas as regalias possíveis. “Abriu uma das mochilas e tirou um tênis novo que ele mesmo tinha roubado da casa. Era metalizado e aerodinâmico, as solas brilhando com luzes que pareciam minúsculas cápsulas espaciais. Descalçou as galochas. Quando pôs o tênis, ficou paralisado ao ver que o cadarçoamarrava sozinho, enquanto a palmilha se ajustava ao formato dos seus pés. Já tinha assistido toda a franquia de De volta para o futuro na mostra retrô de um cinema no Once, mas jamais imaginou que os tênis inteligentes realmente existissem.” E é a partir daí que ocorre uma reviravolta no romance, uma virada que Lucía Puenzo propõe de forma muito original na trama. Tão literário quanto cinematográfico Os Invisíveis é um livro comovente e trágico. O seu final obriga-nos a meditar sobre a palavra infância e às responsabilidades que cabem aos adultos. |
Comprimento | 21 |
Edição | 1 |
Editora | GRYPHUS |
ISBN | 9786586061703 |
Largura | 14 |
Páginas | 160 |