II Congresso Internacional de História da Arte - 2001
II Congresso Internacional de História da Arte - 2001
- EditoraALMEDINA
- Modelo: AM24023915
- Disponibilidade: Em estoque
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R$ 399,00
Apresentação A consciência de que se assiste hoje a um reforço da teoria e da prática no campo da História da Arte - assim entendida como disciplina autonomizada, auto-suficiente e provida de utilidade social - perfila-se no nosso país com contornos de nitidez. Após o esforço pioneiro de Joaquim de Vasconcelos, Sousa Viterbo, José de Figueiredo e outros investigadores, no dealbar do século XX, passando pelo trabalho menos perceptível da geração de Vergílio Correia, Reynaldo dos Santos, Robert Smith, Adriano de Gusmão, até à geração de Flávio Gonçalves, Artur de Gusmão e José-Augusto França (com o seu pioneiro Mestrado de História da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa) e às que despontam após o 25 de Abril de 1974, foram dados grandes passos no sentido de se re-conhecerem as existências da arte portuguesa, através de pesquisas de arquivo, inventários de campo, exposições monotemáticas e monografias de autor, e de se tomar maior consciência da importância e significado da nossa produção artística (na metrópole e nos seus espaços de influência ultramarinos) ao longo dos tempos históricos. Novas áreas de criação a par das chamadas 'artes maiores' (como o Urbanismo e o Design), novas épocas mais obscurecidas (como o Maneirismo e o Rococó), entram decididamente no campo de trabalho dos praticantes de História de Arte. O reforço da prática interdisciplinar, o crescendo de estudiosos activos no terreno, o alargamento de interesses da pesquisa a sub-temas e áreas artísticas de âmbito periférico, o estímulo do trabalho de laboratório na área da conservação, restauro e análise das obras, o aumento das frentes de ensino universitário, etc, estão aí a mostrar à sociedade que o papel dos historiadores da arte é, não só útil, como imprescindível para garantir uma mais-valia de eficiência em todas as áreas da sensibilização patrimonial. Vítor Serrão Sessão de Encerramento Senhoras e senhores congressistas, abreviando assim os vocativos devidos, Procuro nestas ocasiões fazer mais de que dizer palavras de circunstância, e posso dizer que já ganhei a manhã com a comunicação do Prof. Navascués a que todos pudemos assistir. Gostaria de dizer algo mais do que manifestar o regozijo por esta realização, este segundo congresso de iniciativa da Associação que, como a Presidente da Sessão teve a ocasião de referir, ganhou um novo alento e tem um largo futuro à sua frente. Para dizer mais do que palavras de circunstância, gostaria de pegar na organização temática deste congresso, em particular nas duas ligações que faz: uma da História de Arte com uma nova política do património, e outra interrogando-se os congressistas sobre as perspectivas da História de Arte, perspectivas situadas ao longo de um século que, de facto, a constitui ao longo de todo o século xx. Se me permitem, gostaria de ligar entre si estas duas ligações que o congresso fez. A importância da História de Arte para a política do património não justifica observações, tão evidente ela é. Não há política de património nem há intervenção patrimonial sem estudo minucioso e contextualizado das obras patrimoniais e a História de Arte, como outras disciplinas, é ai essencial. É essencial justamente naquele sentido que a conferência do Professor Navascués hoje mesmo tão bem ilustrou aos nossos olhos: na medida em que justamente permite contextualizar nos usos sociais, nos projectos sociais as obras patrimoniais que nós hoje consideramos como tais. Há aqui um duplo processo que tem de ser articulado: é o processo pelo qual se sedimenta, mas também varia ao longo do eixo do tempo - a nossa própria concepção de, por um lado, o que seja o património e, por aí, se constitui uma herança patrimonial que vai sempre sendo alterada pelo molde como vai sendo constantemente reinterpretada por cada geração e, por outro lado, o modo como nós só podemos salvaguardar e fruir o património estudando-o. Isto é muito importante e tem consequências práticas muito grandes, designadamente aquando das intervenções em obras patrimoniais. É preciso, como o Professor Navascués teve a oportunidade de defender, ser intransigente na recusa da intervenção meramente operática sobre o património, que o que quer é obra vistosa, com muito dinheiro, o mais depressa possível. Isso é a pior maneira de defender o património, de intervir sobre o património, porque justamente não dá nem o tempo nem a distância necessários ao estudo minucioso, em filigrana, de o que constitui hoje o valor de uma obra patrimonial. A contribuição da História de Arte para o estudo do património - e, portanto, para a intervenção sobre o património - evidencia-se tanto mais quanto nos permite, justamente, contextualizar as obras patrimoniais em referência, mostrando que aquilo que são essas obras não é independente da forma como todos nós - as sucessivas gerações e nós próprios agora - as percepcionamos. É muito importante notar que, sem esta perspectiva a que tecnicamente se deveria chamar - se me permitem o palavrão - fenomenológica, não entendemos bem o que é o nosso património, isto é, sem o pôr justamente em relação com o modo como o fomos apreciando, como o fomos percepcionando e como o fomos representando ao longo de sucessivas gerações. As catedrais, como muitas outras obras patrimoniais, não são apenas as obras físicas, as realidades físicas, não são apenas as realidades históricas - portanto, situadas na espessura temporal que essas obras físicas transportam consigo - e, em muito representações, é impossível percebê-las sem cuidar de perceber o investimento simbólico que sociedades inteiras foram fazendo sobre elas. Porque as sociedades são plurais, atravessadas por conflitualidades e autoridades cruzadas é decisivo, para percebermos bem o que é o património e intervirmos sobre ele, perceber que quilo que temos à nossa frente é incompreensível se não fizermos justamente o esforço fenomenológico de perceber as representações sociais que foram sendo investidas sobre aquilo que temos à nossa frente. Mas também - como tão bem a conferência do Professor Navascués ilustrou -, essa representação simbólica não pode, por sua vez, ser dissociada das formas de ocupação, das formas de uso, do modo como aqueles espaços com os seus lugares consoante os usos e as valorizações que deles vão sendo feitos. Esses espaços e esses usos dos espaços fazem-se por pessoas que assim comunicam umas com as outras, em lógicas mais ou menos estatutárias, em relações que são ao mesmo tempo de comunicação e de poder. Portanto, nas catedrais, como nas outras obras patrimoniais o que temos hoje à nossa frente é também indissociável das sucessivas encenações que nelas foram sendo feitas. Esta ideia do património também como representação, representação no duplo sentido: de representação mental e de representação teatral, é uma ideia que, julgo eu, é absolutamente matricial para quem quiser estudar e perceber o património. E isto que a História de Arte nos ajuda tão bem a perceber tem depois consequências decisivas em todas as três grandes funções, digamos assim, da intervenção patrimonial - seja ela a função de salvaguarda, seja ela a função de conservação, seja ela a íunção de valorização e disponibilização pública do bem patrimonial. Se percebermos bem estes contextos simbólicos e materiais que fazem a dinâmica da constituição de uma obra como obra patrimonial, julgo que estamos mais bem apetrechados para perceber como o podemos salvaguardar, como é que o podemos conservar, como é que podemos fruir o património. No que diz respeito à salvaguarda, mais bem percebemos, assim, a dialéctica que constitui a salvaguarda patrimonial, a dialéctica entre o necessário respeito por heranças e bens que, num certo e fundo sentido, não nos pertencem e, por outro lado, a selectividade na defesa do património sem a qual estaríamos, em matéria patrimonial, na mesma ironia triste de que falava certa história do Jorge Luís Borges a propósito dos mapas de escala 1. 1: não há salvaguarda patrimonial sem selectividade e essa selectividade tem de se cruzar com esta ideia de que, num certo sentido, o património não nos pertence. Algo semelhante se passa no que diz respeito à função de conservação. Precisamos de uma política deliberada de conservação organizada de forma não conservacionista. Também aí é muito importante perceber que ao fim e ao cabo aquilo que consideramos hoje, nos princípios do século XXI, como património, é indissociável da forma como o século romântico constituiu o património, como antes dele o século das luzes tinha proposto uma nova concepção e uma nova funcionalidade de um museu como conservação institucional de um memória triada e é independente da forma como o século xx investiu a cultura de massas e o turismo maciço também em torno dos quadros patrimoniais e tornou os tesouros patrimoniais não só uma riqueza do Estado - como tinha feito o século XVIII -, não só uma riqueza da cultura nacional - como tinha feito o século xix -, mas também pura e simplesmente como uma área de negócio. Portanto, no que diz respeito à conservação, também esta dialéctica só faz sentido na medida em que percebemos que olhando para uma obra olhamos para múltiplas realidades sociais cristalizadas, por assim dizer. Nessa obra física essa dialéctica é também absolutamente necessária em matéria de função depois conservação. Coisa análoga se diga no que respeita à função de divulgação e disponibilização públicas, de forma que possamos perceber que os vários públicos, que fazem hoje a procura de património transportando em si próprios investimentos simbólicos e usos sociais diferenciadas, podem ser todos eles acolhidos nestas casas grandes que são os bens patrimoniais, equilibrada e plasticamente valorizados. Para isto a História de Arte é essencial e, portanto, folgo muito que ao longo destes dias os temas da nova política patrimonial tenham sido tratados pêlos conferencistas. Mas isso implica também interpelar a História de Arte. E era a ligação entre estas duas ligações que eu queria fazer, A História de Arte tem a sua história, como todas as disciplinas. Tem uma história que é muito interessante observar em perspectiva, agora que já não estamos no século do seu amadurecimento e da explosão no bom sentido da palavra e é muito interessante notar como essa historiografia, a história da História de Arte, nos pode dar ensinamentos interessantes do ponto de vista dos utensílios de que necessitamos para estudar o património e intervir hoje sobre o património. É muito interessante notar que a grande disciplina histórica se constituiu, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, como se fosse uma não-ciência suportada por ciências auxiliares, como se fosse uma grande narrativa político-diplomática ou de ideias, suportada por disciplinas auxiliares, como se a grande narrativa não fosse científica podendo ser as disciplinas auxiliares. Estou a falar da numismática, da epigrafia, da paleografia, estou a falar dos tempos anteriores à Segunda Guerra Mundial em que se dava esta curiosa coincidência de a grande narrativa se considerar como não científica ou pós-científica, suportada por pequenas disciplinas instrumentais que, essas sim, podiam ser consideradas como científicas. Estou a falar de como esta forma de constituição da História, de uma história rainha de várias disciplinas, foi depois desafiada pelo grande movimento dos anos quarenta, cinquenta e sessenta, um movimento de reaproximação da História ao grande universo das ciências ditas humanas ou sociais - uma reaproximação que, para o ser, teve que pontuar muito mais (talvez hoje aos nossos olhos exageradamente) o lado da estrutura, o lado da objectividade, o lado da duração em desfavor do lado da conjuntura, do acontecimento, o lado também da análise fenomenológica. Esse grande movimento dos anos cinquenta e sessenta foi o movimento que tendeu a ser um movimento muito centrípeto, trazendo para a grande trave mestra, da então chamada história económica e social, disciplinas que antes dele, digamos, estavam em círculos concêntricos mais alargados. Aquilo a que assistimos nos anos setenta e oitenta - em Portugal, isso é muito evidente nos anos oitenta e noventa - é, digamos, o que um francês chamaria déclatement, isto é, fragmentação da História e das diferentes disciplinas - a devida transcrição em termos de cursos de formação e associações profissionais, autonomizando-se a arqueologia, autonomizando-se a História de Arte, autonomizando-se ou tentando autonomizar-se outras áreas. O risco que se joga nesse movimento de fragmentação é naturalmente o de perder a possibilidade de considerar devidamente a natureza holística dos processos históricos. Julgo que estamos a corrigir isso dos anos noventa para cá, através justamente de a tentativa de constituir áreas pluridisciplinares em torno de temáticas. Aconteceu isso claramente com o património, com a constituição de áreas temáticas multidisciplinares trazidas da História, mas também do território, isto é, da geografia, mas também da arquitectura e também das disciplinas das ciências físicas, a das engenharias, que são absolutamente necessárias para perceber e intervir sobre o património. Estamos justamente a procurar, julgo eu, encontrar novas possibilidades de perceber as totalidades que organizam os processos sociais através destes movimentos de aproximação temática de diferentes disciplinas. Pessoalmente, sou um fervoroso adepto deste processo, sob uma condição: não recusemos diluir as especificidades teórica e técnica que constituem cada disciplina, porque o movimento pluridisciplinar é um movimento positivo quando parte e potência essas especificidades e é, do meu ponto de vista, um movimento negativo quando procura diluir as especialidades com a ilusão de que poderia haver uma ciência geral das coisas, qualquer que fosse o nome que essa ciência geral tivesse. Em resumo, julgo que o próprio desafio que a História de Arte nos coloca quando trabalhamos em património é o desafio de dizer: atenção, pensem nas coisas que estão por detrás e por fora e, por isso estão dentro dos bens patrimoniais. Esse desafio de contextualização, de pôr as coisas em escala e de pôr as coisas em perspectiva, é esse mesmo desafio que a História de Arte também deve aceitar, pondo-se a si própria em escala e pondo-se a si própria em perspectiva. Como vêem, se me tivessem convidado a fazer uma comunicação, eu não diria que não. Augusto Santos Silva Ministro da Cultura Tema A - 1900/2000 Balanço e Perspectivas da História da Arte em Portugal Tema B Portugal e o Mundo: Encontro com a Arte Tema C Para uma nova Política do Património: Formação, Conservação e Mercado do Trabalho
Características | |
Ano de publicação | 2004 |
Autor | ARTE, ASSOC.PORT.HISTOR. DE AR |
Biografia | Apresentação A consciência de que se assiste hoje a um reforço da teoria e da prática no campo da História da Arte - assim entendida como disciplina autonomizada, auto-suficiente e provida de utilidade social - perfila-se no nosso país com contornos de nitidez. Após o esforço pioneiro de Joaquim de Vasconcelos, Sousa Viterbo, José de Figueiredo e outros investigadores, no dealbar do século XX, passando pelo trabalho menos perceptível da geração de Vergílio Correia, Reynaldo dos Santos, Robert Smith, Adriano de Gusmão, até à geração de Flávio Gonçalves, Artur de Gusmão e José-Augusto França (com o seu pioneiro Mestrado de História da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa) e às que despontam após o 25 de Abril de 1974, foram dados grandes passos no sentido de se re-conhecerem as existências da arte portuguesa, através de pesquisas de arquivo, inventários de campo, exposições monotemáticas e monografias de autor, e de se tomar maior consciência da importância e significado da nossa produção artística (na metrópole e nos seus espaços de influência ultramarinos) ao longo dos tempos históricos. Novas áreas de criação a par das chamadas 'artes maiores' (como o Urbanismo e o Design), novas épocas mais obscurecidas (como o Maneirismo e o Rococó), entram decididamente no campo de trabalho dos praticantes de História de Arte. O reforço da prática interdisciplinar, o crescendo de estudiosos activos no terreno, o alargamento de interesses da pesquisa a sub-temas e áreas artísticas de âmbito periférico, o estímulo do trabalho de laboratório na área da conservação, restauro e análise das obras, o aumento das frentes de ensino universitário, etc, estão aí a mostrar à sociedade que o papel dos historiadores da arte é, não só útil, como imprescindível para garantir uma mais-valia de eficiência em todas as áreas da sensibilização patrimonial. Vítor Serrão Sessão de Encerramento Senhoras e senhores congressistas, abreviando assim os vocativos devidos, Procuro nestas ocasiões fazer mais de que dizer palavras de circunstância, e posso dizer que já ganhei a manhã com a comunicação do Prof. Navascués a que todos pudemos assistir. Gostaria de dizer algo mais do que manifestar o regozijo por esta realização, este segundo congresso de iniciativa da Associação que, como a Presidente da Sessão teve a ocasião de referir, ganhou um novo alento e tem um largo futuro à sua frente. Para dizer mais do que palavras de circunstância, gostaria de pegar na organização temática deste congresso, em particular nas duas ligações que faz: uma da História de Arte com uma nova política do património, e outra interrogando-se os congressistas sobre as perspectivas da História de Arte, perspectivas situadas ao longo de um século que, de facto, a constitui ao longo de todo o século xx. Se me permitem, gostaria de ligar entre si estas duas ligações que o congresso fez. A importância da História de Arte para a política do património não justifica observações, tão evidente ela é. Não há política de património nem há intervenção patrimonial sem estudo minucioso e contextualizado das obras patrimoniais e a História de Arte, como outras disciplinas, é ai essencial. É essencial justamente naquele sentido que a conferência do Professor Navascués hoje mesmo tão bem ilustrou aos nossos olhos: na medida em que justamente permite contextualizar nos usos sociais, nos projectos sociais as obras patrimoniais que nós hoje consideramos como tais. Há aqui um duplo processo que tem de ser articulado: é o processo pelo qual se sedimenta, mas também varia ao longo do eixo do tempo - a nossa própria concepção de, por um lado, o que seja o património e, por aí, se constitui uma herança patrimonial que vai sempre sendo alterada pelo molde como vai sendo constantemente reinterpretada por cada geração e, por outro lado, o modo como nós só podemos salvaguardar e fruir o património estudando-o. Isto é muito importante e tem consequências práticas muito grandes, designadamente aquando das intervenções em obras patrimoniais. É preciso, como o Professor Navascués teve a oportunidade de defender, ser intransigente na recusa da intervenção meramente operática sobre o património, que o que quer é obra vistosa, com muito dinheiro, o mais depressa possível. Isso é a pior maneira de defender o património, de intervir sobre o património, porque justamente não dá nem o tempo nem a distância necessários ao estudo minucioso, em filigrana, de o que constitui hoje o valor de uma obra patrimonial. A contribuição da História de Arte para o estudo do património - e, portanto, para a intervenção sobre o património - evidencia-se tanto mais quanto nos permite, justamente, contextualizar as obras patrimoniais em referência, mostrando que aquilo que são essas obras não é independente da forma como todos nós - as sucessivas gerações e nós próprios agora - as percepcionamos. É muito importante notar que, sem esta perspectiva a que tecnicamente se deveria chamar - se me permitem o palavrão - fenomenológica, não entendemos bem o que é o nosso património, isto é, sem o pôr justamente em relação com o modo como o fomos apreciando, como o fomos percepcionando e como o fomos representando ao longo de sucessivas gerações. As catedrais, como muitas outras obras patrimoniais, não são apenas as obras físicas, as realidades físicas, não são apenas as realidades históricas - portanto, situadas na espessura temporal que essas obras físicas transportam consigo - e, em muito representações, é impossível percebê-las sem cuidar de perceber o investimento simbólico que sociedades inteiras foram fazendo sobre elas. Porque as sociedades são plurais, atravessadas por conflitualidades e autoridades cruzadas é decisivo, para percebermos bem o que é o património e intervirmos sobre ele, perceber que quilo que temos à nossa frente é incompreensível se não fizermos justamente o esforço fenomenológico de perceber as representações sociais que foram sendo investidas sobre aquilo que temos à nossa frente. Mas também - como tão bem a conferência do Professor Navascués ilustrou -, essa representação simbólica não pode, por sua vez, ser dissociada das formas de ocupação, das formas de uso, do modo como aqueles espaços com os seus lugares consoante os usos e as valorizações que deles vão sendo feitos. Esses espaços e esses usos dos espaços fazem-se por pessoas que assim comunicam umas com as outras, em lógicas mais ou menos estatutárias, em relações que são ao mesmo tempo de comunicação e de poder. Portanto, nas catedrais, como nas outras obras patrimoniais o que temos hoje à nossa frente é também indissociável das sucessivas encenações que nelas foram sendo feitas. Esta ideia do património também como representação, representação no duplo sentido: de representação mental e de representação teatral, é uma ideia que, julgo eu, é absolutamente matricial para quem quiser estudar e perceber o património. E isto que a História de Arte nos ajuda tão bem a perceber tem depois consequências decisivas em todas as três grandes funções, digamos assim, da intervenção patrimonial - seja ela a função de salvaguarda, seja ela a função de conservação, seja ela a íunção de valorização e disponibilização pública do bem patrimonial. Se percebermos bem estes contextos simbólicos e materiais que fazem a dinâmica da constituição de uma obra como obra patrimonial, julgo que estamos mais bem apetrechados para perceber como o podemos salvaguardar, como é que o podemos conservar, como é que podemos fruir o património. No que diz respeito à salvaguarda, mais bem percebemos, assim, a dialéctica que constitui a salvaguarda patrimonial, a dialéctica entre o necessário respeito por heranças e bens que, num certo e fundo sentido, não nos pertencem e, por outro lado, a selectividade na defesa do património sem a qual estaríamos, em matéria patrimonial, na mesma ironia triste de que falava certa história do Jorge Luís Borges a propósito dos mapas de escala 1. 1: não há salvaguarda patrimonial sem selectividade e essa selectividade tem de se cruzar com esta ideia de que, num certo sentido, o património não nos pertence. Algo semelhante se passa no que diz respeito à função de conservação. Precisamos de uma política deliberada de conservação organizada de forma não conservacionista. Também aí é muito importante perceber que ao fim e ao cabo aquilo que consideramos hoje, nos princípios do século XXI, como património, é indissociável da forma como o século romântico constituiu o património, como antes dele o século das luzes tinha proposto uma nova concepção e uma nova funcionalidade de um museu como conservação institucional de um memória triada e é independente da forma como o século xx investiu a cultura de massas e o turismo maciço também em torno dos quadros patrimoniais e tornou os tesouros patrimoniais não só uma riqueza do Estado - como tinha feito o século XVIII -, não só uma riqueza da cultura nacional - como tinha feito o século xix -, mas também pura e simplesmente como uma área de negócio. Portanto, no que diz respeito à conservação, também esta dialéctica só faz sentido na medida em que percebemos que olhando para uma obra olhamos para múltiplas realidades sociais cristalizadas, por assim dizer. Nessa obra física essa dialéctica é também absolutamente necessária em matéria de função depois conservação. Coisa análoga se diga no que respeita à função de divulgação e disponibilização públicas, de forma que possamos perceber que os vários públicos, que fazem hoje a procura de património transportando em si próprios investimentos simbólicos e usos sociais diferenciadas, podem ser todos eles acolhidos nestas casas grandes que são os bens patrimoniais, equilibrada e plasticamente valorizados. Para isto a História de Arte é essencial e, portanto, folgo muito que ao longo destes dias os temas da nova política patrimonial tenham sido tratados pêlos conferencistas. Mas isso implica também interpelar a História de Arte. E era a ligação entre estas duas ligações que eu queria fazer, A História de Arte tem a sua história, como todas as disciplinas. Tem uma história que é muito interessante observar em perspectiva, agora que já não estamos no século do seu amadurecimento e da explosão no bom sentido da palavra e é muito interessante notar como essa historiografia, a história da História de Arte, nos pode dar ensinamentos interessantes do ponto de vista dos utensílios de que necessitamos para estudar o património e intervir hoje sobre o património. É muito interessante notar que a grande disciplina histórica se constituiu, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, como se fosse uma não-ciência suportada por ciências auxiliares, como se fosse uma grande narrativa político-diplomática ou de ideias, suportada por disciplinas auxiliares, como se a grande narrativa não fosse científica podendo ser as disciplinas auxiliares. Estou a falar da numismática, da epigrafia, da paleografia, estou a falar dos tempos anteriores à Segunda Guerra Mundial em que se dava esta curiosa coincidência de a grande narrativa se considerar como não científica ou pós-científica, suportada por pequenas disciplinas instrumentais que, essas sim, podiam ser consideradas como científicas. Estou a falar de como esta forma de constituição da História, de uma história rainha de várias disciplinas, foi depois desafiada pelo grande movimento dos anos quarenta, cinquenta e sessenta, um movimento de reaproximação da História ao grande universo das ciências ditas humanas ou sociais - uma reaproximação que, para o ser, teve que pontuar muito mais (talvez hoje aos nossos olhos exageradamente) o lado da estrutura, o lado da objectividade, o lado da duração em desfavor do lado da conjuntura, do acontecimento, o lado também da análise fenomenológica. Esse grande movimento dos anos cinquenta e sessenta foi o movimento que tendeu a ser um movimento muito centrípeto, trazendo para a grande trave mestra, da então chamada história económica e social, disciplinas que antes dele, digamos, estavam em círculos concêntricos mais alargados. Aquilo a que assistimos nos anos setenta e oitenta - em Portugal, isso é muito evidente nos anos oitenta e noventa - é, digamos, o que um francês chamaria déclatement, isto é, fragmentação da História e das diferentes disciplinas - a devida transcrição em termos de cursos de formação e associações profissionais, autonomizando-se a arqueologia, autonomizando-se a História de Arte, autonomizando-se ou tentando autonomizar-se outras áreas. O risco que se joga nesse movimento de fragmentação é naturalmente o de perder a possibilidade de considerar devidamente a natureza holística dos processos históricos. Julgo que estamos a corrigir isso dos anos noventa para cá, através justamente de a tentativa de constituir áreas pluridisciplinares em torno de temáticas. Aconteceu isso claramente com o património, com a constituição de áreas temáticas multidisciplinares trazidas da História, mas também do território, isto é, da geografia, mas também da arquitectura e também das disciplinas das ciências físicas, a das engenharias, que são absolutamente necessárias para perceber e intervir sobre o património. Estamos justamente a procurar, julgo eu, encontrar novas possibilidades de perceber as totalidades que organizam os processos sociais através destes movimentos de aproximação temática de diferentes disciplinas. Pessoalmente, sou um fervoroso adepto deste processo, sob uma condição: não recusemos diluir as especificidades teórica e técnica que constituem cada disciplina, porque o movimento pluridisciplinar é um movimento positivo quando parte e potência essas especificidades e é, do meu ponto de vista, um movimento negativo quando procura diluir as especialidades com a ilusão de que poderia haver uma ciência geral das coisas, qualquer que fosse o nome que essa ciência geral tivesse. Em resumo, julgo que o próprio desafio que a História de Arte nos coloca quando trabalhamos em património é o desafio de dizer: atenção, pensem nas coisas que estão por detrás e por fora e, por isso estão dentro dos bens patrimoniais. Esse desafio de contextualização, de pôr as coisas em escala e de pôr as coisas em perspectiva, é esse mesmo desafio que a História de Arte também deve aceitar, pondo-se a si própria em escala e pondo-se a si própria em perspectiva. Como vêem, se me tivessem convidado a fazer uma comunicação, eu não diria que não. Augusto Santos Silva Ministro da Cultura Tema A - 1900/2000 Balanço e Perspectivas da História da Arte em Portugal Tema B Portugal e o Mundo: Encontro com a Arte Tema C Para uma nova Política do Património: Formação, Conservação e Mercado do Trabalho |
Comprimento | 23 |
Edição | 1 |
Editora | ALMEDINA |
ISBN | 9789724023915 |
Lançamento | 01/01/2004 |
Largura | 16 |
Páginas | 750 |